A água como instrumento de libertação

“Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria…” a marchinha de Carnaval, dos compositores Luís Antonio e J. Júnior, apesar de feita em homenagem a uma mulata cobiçada, há mais de seis décadas, retrata uma triste realidade mundial que continua presente, em pleno Século XXI, mesmo com tantas evoluções, entre elas, a Revolução Tecnológica. O tema, por sua importância, ganhou destaque quando a Organização das Nações Unidas – ONU – preconizou que o acesso á água potável é uma necessidade básica à vida humana, em documento chancelado pelos países membros na Assembleia Geral da ONU de 2015, “Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”. O documento é um guia para a comunidade internacional para os próximos anos, servindo como um plano de ação para toda a população mundial, coletivamente criado para colocar o mundo em um caminho mais sustentável e resiliente.

Na Região dos Lagos a realidade começou a mudar, há 21 anos, depois que o serviço de distribuição de água e coleta de esgoto foi privatizado. Segundo o site da concessionária Prolagos, empresa que atende cinco municípios, já foram investidos mais de 1,5 bilhão de reais em saneamento básico, aumentando o abastecimento de água tratada de 30% para 97,12% das residências, graças á construção e ampliação de duas estações de tratamento d’água, conectadas a 278 quilômetros de adutoras e 2,2 mil quilômetros de rede de distribuição.

Mas, bem antes disso, na Região dos Lagos, a água potável já era tratada como questão fundamental para a ocupação humana, mais exatamente entre os anos de 1600 e 1700, quando aqui foi instalada a fazenda de Santo Inácio dos Campos Novos, uma propriedade tão extensa que, hoje, abrangeria todo o município de Búzios, parte de Cabo Frio e de São Pedro da Aldeia. A água era um verdadeiro “artigo de luxo”, simbolizado pela Fonte do Itajuru, ao redor da qual a cidade de Cabo Frio se desenvolveu.

História

Antigo poço foi transformado em bebedouro para animais. Foto: Luciano Moreira

A localização da fazenda foi determinada, exatamente, pela presença de água. A potável, proveniente das três nascentes da região, e a doce, para o uso geral, do Rio Una. A propriedade, pertencente aos Jesuítas, era utilizada como entreposto escravagista, um ponto de distribuição dos escravos que chegavam da África em navios e desembarcavam em Búzios. Na Fazenda de Campos Novos, os negros recém-chegados passavam por uma seleção: os que estavam em boas condições físicas eram enviados para outras regiões. Já os que chegavam com a saúde debilitada, devido às terríveis condições dos navios negreiros, iam para o conjunto de pequenas fazendas que compunham a Campos Novos para se recuperar, antes de ser vendidos. Os negros que chegavam mortos eram levados para uma dessas fazendas, conhecida como Caveira, onde se enterravam, também, ossadas de animais.

Com a abolição da escravatura, em 13 de maio de 1888, os escravos recém-libertos continuaram morando justamente na fazenda Caveira, pois era ali que se encontrava a principal nascente d’água. Lá constituíram suas famílias e, em troca do direito do uso da terra, ofereciam trabalho nas plantações de fazendeiros. Atualmente, vivem no território de 220 hectares cerca de 280 famílias, aproximadamente, 1.200 pessoas.

Lata d’água na cabeça

Área hoje também serve como local para criação de animais. Foto: Luciano Moreira


Rosa, Geralda, Josa e, com certeza, algumas Marias, são personagens reais que, assim como a mulata Maria, cantada em versos, não se cansaram de buscar latas e latas de água na cabeça, para molhar a plantação, alimentar os animais e manter o sustento de suas famílias, na Comunidade Quilombola Caveira/Botafogo, no município de São Pedro da Aldeia.

As lavouras da comunidade foram a principal forma de resistência, diante de todas as tentativas de expulsão por parte das pessoas que adquiriram as terras dos Jesuítas. Na época das perseguições e ameaças, as lavouras eram um sinal concreto da forma produtiva de ocupação das terras pelo “povo da Caveira”.

Após anos de lutas e sofrimento pela permanência no local, em 1998, o grupo foi oficialmente reconhecido como “remanescente de quilombo” e, desde então, permanece nas terras em que habitaram seus antepassados, agora denominadas como “Comunidade Quilombola Botafogo-Caveira”, totalmente inserida no município de São Pedro da Aldeia, fazendo limite com os municípios de Iguaba Grande, Cabo Frio e Araruama.

Mas a divisão do entorno em pequenas fazendas foi impactando o meio ambiente, e a atividade de extração de areola, acabou por prejudicar os lençóis freáticos e as nascentes foram, gradativamente diminuindo, fazendo aumentar, na mesma proporção, as dificuldades do acesso da comunidade à água potável.

Josefina Dutra José, mais conhecida como Dona Josa é, hoje, a remanescente mais antiga a permanecer nas “terras da Caveira”. Com seus “oitenta e alguns anos”, como diz, passou por todos os problemas e situações humilhantes vividos pela comunidade: “o poço ficava muito longe, então, nós juntávamos as mulheres e íamos lavar roupa e buscar água pra beber. Era trouxa de roupa debaixo do braço e lata d’água na cabeça. A gente ia em silêncio, pra não chamar a atenção dos cachorros. Mas o moço, dono da fazenda, quando nos pegava lá, soltava os bichos e a gente tinha que correr. Uma vez, tomei coragem e fui, sozinha, porque tinha muita roupa pra lavar. Quando estava no poço, o dono chegou e falou que não queria “gente preta” lá e que ia colocar jagunço. Com lágrimas nos olhos, eu perguntei pra ele, onde iríamos lavar nossa roupa e pegar água pra beber. Ele não respondeu e, no outro dia, colocou aquele monte de jagunço armado em volta do poço. A gente sofria muito”, contou, emocionada.

A liberdade

Comunidade, agora, pode usufruir da natureza, com os benefícios da água tratada. Foto: Luciano Moreira

“Pra quem carregava lata d’água na cabeça todo dia, ter água na torneira, é mais que uma vitória, é a liberdade total”.


As lutas para que a situação da Comunidade melhorasse transformaram-se em diálogo, a partir do momento em que um integrante da quarta geração das “terras das Caveiras” conseguiu eleger-se vereador em São Pedro da Aldeia, e procurou a concessionária de águas e esgoto para apresentar o problema vivido por sua gente.

Roberto dos Santos iniciou os diálogos com a Prolagos. Foto: Luciano Moreira

“Tudo começou com uma conversa com o engenheiro Thiago Maziero. Eu argumentei que, se a rede passava ao longo da Rodovia Amaral Peixoto, rumo a Búzios, por qual motivo não poderia ser colocada uma ramificação para a nossa comunidade, que está às margens estrada?”, contou Roberto dos Santos, o Robertão, tido pela comunidade como seu “líder”.

Não precisou de muita conversa. A Prolagos entendeu os argumentos e, desde 2013 a comunidade é abastecida por uma rede de 20 quilômetros que, inclusive, foi estendida a algumas localidades do bairro Botafogo, que pertence à cidade de Cabo Frio.

Hoje a Comunidade Quilombola Botafogo-Caveira comemora os benefícios da água tratada fornecida pela concessionária, que, segundo Roberto dos Santos, diminuiu entre 60% e 70% o índice de doenças transmitidas pela água – as chamadas doenças tropicais negligenciadas, causadora, entre outras, de esquistossomose, diarréias e outras doenças parasitárias –, o que vem proporcionando uma melhora significativa na qualidade de vida, mostrando que a água também pode ser usada com um instrumento de libertação.
“Pra quem carregava lata d’água na cabeça todo dia, ter água na torneira, é mais que uma vitória, é a liberdade total”, sentenciou Dona Josa.