A Lagoa de Araruama – ou laguna, como preferem os especialistas por suas características – é a maior massa de água hipersalina do mundo, abrangendo os municípios de Araruama, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia, Cabo Frio e Arraial do Cabo, local nacionalmente conhecido como Região dos Lagos.
Mais que um título, esse espelho d’água é o protagonista de uma história cujo enredo ainda não terminou de ser escrito e permanece mutável, não nas mãos de seu autor, mas do personagem mais coadjuvante dessa história toda: o homem.
Em sua dissertação de mestrado, a jornalista Andréa Luiza Collet descreve que, desde os primórdios, a Lagoa de Araruama é uma formação natural com papel preponderante na história do continente americano, funcionando como um dos principais pontos de atração e concentração humana e intervindo na formatação populacional e econômica do que é, hoje, uma das regiões mais importantes do Sudeste brasileiro.
VIDA
Estudos arqueológicos apontam que o homem dependia da Lagoa de Araruama para sobreviver desde 1.500 D.C., conforme pesquisas arqueológicas que identificaram e dataram os sambaquis (amontoado de conchas)encontrados no entorno da laguna, passando por outras eras de ocupação igualmente registradas pela arqueologia, que remetem há sete mil anos a presença humana de subsistência, a base de peixes e moluscos que a laguna oferecia em profusão.
Mas, foi há cerca de 2.600 anos que os índios Tupinambás posicionaram suas aldeias às margens da laguna e desenvolveram uma cultura própria e vida social peculiar, em plena harmonia ambiental.
Mais tarde, a região tornou-se área de proteção do litoral, especialmente contra corsários e invasores franceses. Em 13 de novembro de 1615 a cidade de Cabo Frio é criada, como o nome de Santa Helena e, em 16 de maio de 1617, nasce a Aldeia de São Pedro de Cabo Frio, hoje São Pedro da Aldeia. Esses dois núcleos de povoamento deram origem aos demais municípios do que hoje formam a Região dos Lagos.
Assim como nos primórdios, a Lagoa de Araruama continuou sendo a principal fonte de alimentos (peixes e moluscos), mas ganhou importância como via de deslocamento e, principalmente, no fornecimento de sal, que se acumulava em suas margens, independente da ação humana e tinha grande valor comercial.
Dessa forma, os primeiros habitantes do entorno da Lagoa de Araruama criaram como cultura a utilização dos seus recursos naturais, com as atividades de pesca de camarão, carapeba, carapicu e tainha, coleta de mariscos nos manguezais e a extração de sal.
Esse convívio harmônico entre o homem e a natureza durou até o início da extração predatória de Pau-Brasil, quando Portugal passou a escravizar a mão de obra indígena e a devastar suas reservas vegetais.
Com o fim do ciclo do Pau-Brasil, o sal passou a ser a maior fonte de renda da população local, a partir da modernização do país com a “Era Mauá”, a chegada das ferrovias e a instalação, em 1828, da Salina Grande, em Perynas, concessão de Dom Pedro I ao alemão Luis Lindemberg. A salina é considerada a primeira grande empresa produtora de sal do país. Em 1930, havia cento e vinte salinas ao redor da laguna e, em 1950, a Refinaria Nacional de Sal, a popular Sal Cisne, instala-se em Cabo Frio, na mesma década em que a Companhia Nacional de Álcalis é implantada no então distrito de Arraial do Cabo, tendo como matéria prima para a produção de cal, soda cáustica e barrilha, conchas extraídas da Laguna de Araruama. Podem-se somar à exploração econômica dessa época, as primeiras atividades turísticas, que transformavam as estreitas faixas de areia do entorno da laguna, em uma miríade de guarda-sóis e em ponto de atividades esportivas.
Ou seja, sal e conchas, a essência da Lagoa de Araruama, passam a ser explorados sem regulamentação, em detrimento das formas de vida que completavam seu ecossistema.
O sal perdeu a concorrência com a produção da Região Nordeste do Brasil no início dos anos 1990 e, em 2006, a produção de cal, barrilha e soda cáustica na Álcalis não resistiu à queda das barreiras de importação da produção Argentina, muito mais barata que a nacional e a empresa faliu.
Em 1974, o governo militar inaugura a Ponte Rio-Niterói, e a Região dos Lagos passa a experimentar outra realidade econômica: a do turismo de veraneio. Junto com o bônus, vem o ônus e as margens da laguna passam a ser alvo de exploração imobiliária. A população da região triplica na chamada “alta temporada”, assim como a produção de lixo e a emissão de dejetos no corpo hídrico.
MORTE
Como em toda cultura extrativista, um conceito que raramente é relacionado com a sustentabilidade, o que foi aplicado à Lagoa de Araruama não foi diferente. Aos poucos, mas não sem alertas, todo o ecossistema lagunar foi sendo degradado, redundando em mortandade de peixes, registrada em várias oportunidades, assoreamento e aumento da quantidade de esgoto despejado in natura em toda a área do sistema lagunar.
O grande colapso veio em 1999. A água da laguna tornou-se turva, o odor insuportável, a vida insustentável e a atividade turística impraticável.
A pesca de subsistência praticamente deixou de existir. O turismo desapareceu, transformando a faixa de areia das praias, antes coloridas, em desertos incolores. Algo precisava ser feito.
Segundo o ambientalista Arnaldo Villa Nova, presidente da ONG Viva Lagoa, a partir desse momento, a laguna não correspondia mais a nenhuma das premissas de um ecossistema em equilíbrio. Ele lembra que “a laguna ficou turva e o prejuízo econômico foi grande, tanto na pesca quanto no turismo”. A partir daí, a qualidade da água ficou comprometida nas praias de todos os municípios abrangidos. Essa situação provocou uma grande comoção social. “Nós, que já militávamos na causa desde 1995-1996, pela ONG Vila Lagoa, tanto fizemos que conseguimos a criação do Consórcio Intermunicipal Lagos São João, formado por representantes das prefeituras, empresas privadas, sociedade civil organizada e pelo governo do Estado”, completou Villanova.
“Levantamos que, até 2003, todo o esgoto das cidades de Araruama, Arraial do Cabo, Cabo Frio, Iguaba Grande e São Pedro da Aldeia, era totalmente despejado na laguna. Iniciou-se, então, uma negociação direta com as concessionárias responsáveis pelo abastecimento de água e tratamento de esgoto”, afirmou Villanova. A Prolagos, por exemplo, antecipou seus investimentos em saneamento por meio das obras de captação de esgoto em “tempo seco”, que funciona junto com as redes pluviais.
VIDA
Desde então, tal qual o poema dramático “Morte e Vida Severina”, obra-prima do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999), escrito entre 1954 e 1955, a Lagoa de Araruama descobre que é fugindo da “morte” que se descobre que ela pode ser o grande impulsionador da vida.
Segundo o ex-secretário executivo do Consórcio Intermunicipal Lagos São João, Mario Flavio Moreira, com o início da implantação de Estações de Tratamento de Esgoto (ETEs), começou-se a formar uma espécie de cinturão coletor no entorno da laguna. Hoje são cinco ETEs e uma “wetland”, um sistema artificialmente projetado para utilizar plantas aquáticas no tratamento do esgoto, em Araruama.
Para Mario Flavio, apesar de não ser o sistema ideal, a solução adotada chegou, em 2012, a evitar que 20 milhões de litros de esgoto por dia fossem despejados na laguna.Em outro grande projeto de transposição de bacias, elaborado pelo Consórcio Intermunicipal Lagos São João e executado pela Prolagos em parceria com o governo do Estado, foram removidas cerca de 2.700 toneladas de carga orgânica, com 397 toneladas de nitrogênio e 88 toneladas de fósforo.
A renovação da água da laguna também era ponto preponderante para a recuperação e o desassoreamento começou a ser feito em 2005, com uma média de 90.000 metros cúbicos de areia por ano. A construção da nova Ponte do Ambrósio (ponte deputado Wilson Mendes, na RJ-140), ampliou de 30 para 300 metros o vão entre Cabo Frio e São Pedro da Aldeia e o reaproveitamento do material dragado para ampliar as faixas de areia das praias de Iguaba e Iguabinha, contribuíram para aumentar o turismo recreativo no entorno da laguna.
A criação do Parque Estadual da Costa do Sol, como cerca de 10 mil hectares, embora pouca gente saiba, também é resultado do trabalho pela revitalização da Lagoa de Araruama e garante a preservação da beleza natural de suas dunas e restingas, proporcionando e valorizando o turismo e o lazer de forma responsável e sustentável.
O “Programa de Educação Ambiental” da concessionária Prolagos, focado na efetiva participação social no processo de gestão dos recursos naturais abrange as bacias hidrográficas das Lagoas de Araruama, Saquarema e dos Rios São João e Una, e tem como princípio o conceito de responsabilidade socioambiental (RSA). O programa contempla em seu portfólio projetos como “Saúde nota 10”, voltado a estudantes da rede pública de ensino, Afluentes, que dialoga diretamente com pescadores e líderes comunitários, o Tarifa Social, que atende famílias de menor poder aquisitivo, e o Bolsa Socioambiental. Programas que, de uma forma ou de outra, transformaram pescadores, ribeirinhos e comunidades em multiplicadores da conscientização ambiental, e tornaram-se parte do Pacto pelo Saneamento e do Pacto para a Restauração da Mata Atlântica na Bacia Hidrográfica Lagos São João.
A lição que se pode tirar de toda a saga da Laguna de Araruama, como diz o título, é que da vida e da morte hipersalina, se conseguiu criar uma consciência ambiental sem precedentes na história da Região dos Lagos, aumentou o número de protagonistas, e elevou-se, exponencialmente, a possibilidade desta história ter um final feliz.