Não adianta procurar no dicionário. Não existe uma origem conhecida para a palavra Gargoá. Mas esse é o nome do único pântano totalmente localizado em território cabo-friense, que vem lutando, há séculos, contra tudo e contra todos, para permanecer vivo e cumprir sua função no ecossistema da Mata Atlântica. A ação nociva do homem, por décadas, quase dizimou o bioma que sofreu diversas transformações e adaptações, e continua lutando para manter o equilíbrio ambiental de toda uma região.
O Gargoá acompanha quase paralelamente todo o litoral de Tamoios, como é conhecido o Segundo Distrito de Cabo Frio, desde a região conhecida como Pântano da Malhada, até chegar ao Rio São João, já na divisa com o município de Casimiro de Abreu, pouco mais de 12 quilômetros adiante. Por décadas esse importante bioma passou despercebido pela própria população, uma vez que era quase que totalmente coberto pela mata ciliar e, repleto de troncos e detritos naturais.
Essa é uma situação bem diferente à da época da colonização do território onde, hoje, está Cabo Frio, quando os índios Tamoios, que dão nome ao Segundo Distrito, o utilizavam como um dos principais locais de coleta para subsistência, o que fez do Pântano do Gargoá um dos principais fatores para a fixação dos indígenas na localidade.

Hoje, o Gargoá ainda é um pântano, e não menos importante, já que presta diversos serviços ecossistêmicos essenciais para a manutenção e sobrevivência dos seres vivos. Entre eles, está a proteção contra tempestades e a regulação de enchentes e ser o habitat de uma enorme diversidade de aves, peixes e outros organismos aquáticos.
A ocupação desordenada do segundo Distrito de Cabo Frio fez do Gargoá uma das vítimas mais violentadas pela ação humana. Da mineração ilegal de areia à especulação imobiliária, tudo contribuiu, nas últimas décadas, para que o Gargoá fosse perdendo sua composição natural, seus nutrientes e tendo sua área invadida, soterrada e diminuída.

Segundo Dalva Mansur, diretora do Subcomitê da Bacia do Una e do Cabo Búzios e coordenadora da Câmara Técnica de Educação Ambiental e Comunicação Social do Comitê da Bacia Hidrográfica Lagos São João, ainda na década de 1950, a extração ilegal de areia deu início à transformação do Pântano do Gargoá: “uma imagem aérea do local vai mostrar uma série de lagoas de médio e pequeno porte. A água que está nessas lagoas veio, exatamente, do Gargoá, que foi perdendo espaço e sendo degradado. Os mapas hidrográficos sempre o classificaram como pântano, sendo que todo o seu entorno foi considerado área de reserva pelo próprio INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária –, quando iniciaram os assentamentos na região”, afirma.
Pântano imprescindível para a fauna e a flora e para a subsistência indígena, o Gargoá passou a ser soterrado para a formação de loteamentos ilegais, assoreado pela mineração de areia, o pântano, cujas matas ciliares, ainda hoje, formam um corredor entre o Parque da Preguiça e o Parque Natural Municipal do Mico-Leão-Dourado, servindo como rota de fuga e proteção da fauna, poderia ser, na opinião de Dalva Mansur, “uma área bem parecida com o pantanal mato-grossense, com uma biodiversidade imensa e específica, por conta da sua localização próxima ao mar, com a presença permanente de jacarés, aves, mamíferos e outras espécies de animais”.
Mas, nos últimos anos, uma causa específica acelerou exponencialmente sua degradação: a especulação imobiliária.
Grupos de grileiros de terra passaram a aproveitar as atrações turísticas, a localização privilegiada e o crescimento do comércio do Segundo Distrito de Cabo Frio para abrir loteamentos ilegais, aterrando o pântano para comercializar lotes baratos a turistas e pessoas de baixa renda.
E, assim, o Gargoá foi desaparecendo da paisagem. O Gargoá precisava de ajuda.
Eis que, nos últimos anos, a especulação imobiliária que maculava a preservação ambiental passou a ser combatida por equipes formadas por fiscais das coordenadorias de Meio Ambiente e Assuntos Fundiários da secretaria de Desenvolvimento de Cabo Frio, que resolveu “adotar” o pântano do Gargoá e desprender todos os esforços possíveis para diminuir os impactos ambientais.

Em um período de cerca de dois anos e meio, foram mais de 50 operações de combate à invasão de áreas públicas e de proteção ambiental, que trouxeram á tona a necessidade de se preservar o que ainda restava do Gargoá. Foram flagrados loteamentos prontos, outros sendo construídos exatamente sobre o pântano, outros em fase de instalação de casas e outros tipos de construções, como passarelas feitas de pneus para tentar sobrepuja o Gargoá.
Prisões, multas, apreensão de materiais utilizados para a abertura de loteamentos, como máquinas pesadas, caminhões e material de construção, responsáveis ou prepostos, criminalizados, animais (micos-leões-dourados e pássaros), prontos para serem traficados em feiras na Capital, apreendidos, recuperados e libertados, foram o saldo desse período de fiscalização constante. Enquanto isso, vidas humanas foram salvas com o impedimento do avanço das construções sobre o Gargoá.
A resposta da natureza

Tal qual um guerreiro indígena, assim que foi ameaçado de morte, o Gargoá reagiu. Atacado por todos os lados, literalmente, pela ação humana, o pântano mostra estar lutando por sua própria sobrevivência quando há períodos prolongados de chuva.
Mas, não sozinho. Além de todo o trabalho desenvolvido pelo Consórcio Intermunicipal, as pessoas que lideraram equipes que trabalharam incessantemente contra os ataques atuais ao Gargoá, enquanto puderam, afirmaram que não se pode comemorar os resultados como uma guerra vencida, mas como batalhas ganhas, entre muitas que ainda virão pela frente.
“O Gargoá vem sendo vítima da ocupação humana criminosa e covarde. Um bioma histórico sucessivamente estrangulado com diversas ações danosas ao meio ambiente, com aterramentos e construções ilegais. É preciso que se mantenha atenção constante para continuar a dar chances do Gargoá se recuperar” afirmou o ex-secretário de Meio Ambiente de Cabo Frio, Mario Flavio Moreira.
“Mais que uma questão fundiária, ajudar o Gargoá a voltar a ser o que era, nem que seja apenas uma parcela de tudo o que representou no passado, é uma grande recompensa para todos os que trabalham com afinco por dias melhores para Cabo Frio. Retirando as ocupações ilegais sobre o pântano, estávamos, ao mesmo tempo, cuidando do patrimônio público, do meio ambiente e da própria população cabo-friense”, afirmou o ex-coordenador de Assuntos Fundiários Ricardo Sampaio.
Dalva Mansur completa o raciocínio, mas aposta em outras formas de abordagem. “O Pântano do Gargoá é totalmente recuperável, mas a comunidade em geral precisa entender que não se deve aterrar ecossistema assim, instável. Minha aposta é na educação. Tem que fiscalizar, sim, mas precisamos conscientizar essas pessoas de que, um dia a água vai voltar, o pântano continuará pântano, e é necessária uma efetiva participação da gestão municipal nesse processo educacional. É preciso estabelecer formas para que as pessoas possam adquirir lotes em outros locais e a preços viáveis. Enquanto isso, regularizar a situação do Plano Diretor no Segundo Distrito, realizar a limpeza das ruas e proporcionar condições para os que estão irregulares de saírem de lá, de cima do Gargoá”, afirmou.
Um fator que pode ser determinante para que o Rio Gargoá tenha seu processo de recuperação acelerado, é a intervenção da Prolagos, concessionária responsável pelos serviços de saneamento básico nos municípios da Região dos Lagos, que prepara investimentos de grande porte para instalação e expansão da rede separadora – água e esgoto – além da construção de uma estação de tratamento de esgoto no Segundo Distrito.
Coadunando com as ações que precisam ser realizadas em série e em conjunto, essa expansão da rede de esgoto no Segundo Distrito pode acabar direcionando as pessoas a adquirirem lotes e imóveis construídos em locais que não agridam a natureza nem representem risco à população.
Um dos sinais de que o Pântano do Gargoá faz parte dos planos ambientais da Concessionária, foi a realização de um plantio de mudas nativas na área que circunda o pântano, envolvendo alunos das escolas da rede municipal de ensino do segundo Distrito, que receberam orientações acerca do meio ambiente, da necessidade de preservação dos ecossistemas e de se respeitar a força da natureza, tão presente em Cabo Frio.
Essas são ações estruturais que interferem diretamente na forma de ocupação de qualquer área, justamente o que o Segundo Distrito de Cabo Frio precisa para, de uma vez por todas, iniciar uma fase de crescimento sustentável, que não afete o meio ambiente, nem coloque em risco o ecossistema, como veem acontecendo.
Esperanças
Hoje, o Gargoá encontra-se em fase latente. Os esforços feitos no passado fizeram, literalmente, aflorar a necessidade de se resgatar a importância do único Rio que nasce e ainda não morreu em Cabo Frio.
Desde os esforços quase solitários, das ações de ONGs ambientalistas, do Comitê da Bacia Hidrográfica Lagos São João, até as ações de fiscais municipais contra pessoas que corrompem as regras sociais e a Lei para satisfazer seu interesse monetário, tudo o que se fez – e se faz – pela sobrevivência do Gargoá, redunda em mais biodiversidade e mais chances de que um dia, o “último guerreiro Tamoio” saia do estado de dormência para voltar a mostrar sua força, colocando suas “armas” a serviço da recuperação da natureza, presenteada por Deus à cidade de Cabo Frio.
Como dissemos no início da matéria, ainda não há uma definição ou significado para a palavra Gargoá. Fica aqui a sugestão de que, toda vez que ela vier associada ao pântano que corta o Segundo Distrito de Cabo Frio quase que de ponta a ponta, ela seja entendida como “guerreiro adormecido”.